Criar pontes é o caminho para superar as dificuldades trazidas pelo isolamento social
Durante muitos anos, a falta de tempo para o convívio foi um grande motivo de queixas em relação à ausência de momentos em família. Mas, no período atual, a necessidade de ficarmos mais em casa tem modificado esse cenário. Entre laços criados e desafios encarados, como estamos lidando com essa fase?
Parte dos brasileiros continua seguindo as orientações de isolamento sugeridas por órgãos de saúde. Segundo informações da empresa Inloco, que coleta dados de dispositivos móveis (telefones celulares) para estimar a quantidade de pessoas que diariamente saem de casa, a média de indivíduos cumprindo isolamento foi a maior dos últimos 5 meses.
Mas viver confinado nem sempre é tarefa fácil. O estresse se acumula, as emoções transbordam e, muitas vezes, acabamos explodindo. Os respingos sobre aqueles que convivem conosco são inevitáveis.
Esse tipo de situação limite aconteceu na casa do editor de vídeo Matheus Rezende. Tudo começou com uma conversa aparentemente corriqueira.
Junto com as experiências conflituosas como a de Matheus, males como estresse, depressão e ansiedade também ficaram mais presentes na vida de quem passou os últimos meses em isolamento social.
Desde 2017, o Brasil é o país com os maiores índices de pessoas com ansiedade. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o mal atinge 9,3% da população. São, ao todo, 18,6 milhões de brasileiros doentes.
Ainda assim, muitas vezes um desconforto pode ser o que precisamos para buscar a mudança. Mesmo com desentendimentos, Matheus acha que as coisas foram se acertando dentro de casa, com diálogo e empatia. Ele espera que as pessoas busquem evoluir com essa experiência.
“Procuramos estabelecer uma rotina, onde todos se ajudam. E houve uma mudança, de companheirismo maior. Com a união dos irmãos que não existia antes da pandemia, uma preocupação de sempre trocar ideia e procurar debater de forma calma e não mais a ponto de discutir para brigar. O confinamento deixará o legado de união, amor, fraternidade, lealdade e compreensão, pois, não havendo nenhum desses, haverá o fim de mais uma família.” Por sua vez, a coordenadora de experiência do cliente Juliana di Camillo também viveu tempos difíceis: ela encarou uma gravidez cheia de inseguranças trazidas pelo novo vírus, que se estenderam até depois do nascimento do bebê.
Mesmo com todas as dificuldades, Juliana entende que o confinamento ajudou a aproximar o casal. A parceria com o marido foi justamente o que deu forças para superar as dificuldades.
“A quarentena não trouxe distanciamento entre nós, pelo contrário: pudemos ver o quanto somos complementares e o quanto pudemos contar um com o outro. [A relação] melhorou. Ter passado por uma gravidez e um puerpério nessas condições nos ensinou muito.
A nossa convivência nunca foi ruim, mas pudemos perceber que estamos felizes com as nossas escolhas como família.”
A relação com os filhos também mudou na casa das famílias brasileiras. Afinal, são eles os que mais requerem atenção em nosso dia a dia, sobretudo no caso dos mais novos. A professora Vanessa Penteado conta um pouco de como as coisas mudaram.
Entre um ajuste e outro feito para adequar a dinâmica doméstica à realidade desafiadora, as coisas foram se encaixando. Mas não foi nada fácil para Vanessa: logo após o início da pandemia, ela perdeu um bebê devido a complicações ocorridas durante uma gravidez ectópica – quando o óvulo fecundado se instala e se desenvolve fora da cavidade uterina.
A necessidade de distanciamento social impossibilitou que ela recebesse abraços calorosos de consolação. Além disso, outros problemas familiares tornaram o momento ainda mais difícil. Entretanto, diante desse cenário caótico, dentro de casa os laços foram surgindo de uma maneira positiva.
Afinal, o que se passa com a gente?
Em momentos como esse, os sentimentos ficam à flor da pele. Mas, como mostram nossos entrevistados, crises e conflitos podem ser superados.
Para saber qual a melhor forma de lidar com as dificuldades, é importante saber que existe uma explicação para tudo o que se passa com nossa mente e corpo.
“A vida em família durante uma pandemia é um grande desafio. Todas as vezes que ficamos muito tempo expostos numa relação familiar aumentam as chances de nos irritarmos e estressarmos com pequenas coisas. O excesso de estímulo vicia o olhar e, quando estamos muito próximos, passamos a estimular uns aos outros. Por isso, é fundamental que as famílias, nesse excesso de proximidade, possam aprender a construir pontes”, explica Camila Cury, 35 anos, psicóloga, fundadora e CEO da Escola da Inteligência
Construir pontes. A ideia parece ótima, mas a prática pode não ser tão simples de se implementar. Por isso, a especialista apresenta duas atitudes que têm ajudado muitas pessoas: Contemple o belo Perceba a beleza das pequenas coisas do dia a dia, como o sorriso de quem se ama ou a árvore florida na frente de casa.
Aprenda a agradecer A sensação de gratidão libera dopamina e serotonina no cérebro, gerando prazer, energia e motivação.
Para Marcos Wagner, psicanalista, mestre em psicologia e professor universitário, e Karoline Paiva, psicóloga e psicopedagoga, o desconforto emocional em tempos de isolamento também pode ser combatido de outras formas. Ambos os especialistas desenvolveram uma cartilha com pontos que têm sido trabalhados por indivíduos abalados com a situação. São eles:
:: Evitar o excesso de informações desnecessárias, elas podem gerar ansiedade;
:: Evitar pensamentos vitimistas, eles distorcem a realidade;
:: Evitar a solidão como percepção de abandono (da família, dos amigos etc.). A sensação de solidão é fruto da pandemia;
:: Evitar o pessimismo como pensamento padrão, pois ele impede a percepção de novos cenários;
:: Evitar ficar sem produzir nada, a inatividade pode causar desânimo;
:: Evitar uma agenda sem compromissos: estabelecer uma rotina diária ajuda na realização de propósitos;
:: Evitar viver numa perspectiva meramente individualista: considerar as regras para um bom convívio coletivo;
:: Evitar observar uma única perspectiva: considerar a realidade da diversidade;
No caso das famílias com filhos, os desafios também podem ser grandes, sobretudo se lembrarmos do desequilíbrio estrutural existente entre pais e mães na responsabilidade de criação – que sempre pesa mais para as mães. Todavia, estudos sugerem justamente que a pandemia ajudou a aproximar os pais de suas crias, o que pode ser entendido como um aspecto positivo na relação doméstica.
Fonte: Making Caring Common, da Escola de Pós-Graduação em Educação de Harvard
Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos mostrou que 68% dos pais se sentem mais próximos ou muito mais próximos de seus filhos desde o início da quarentena. Além disso, apenas 1,4% se sentem menos próximos.
Outro estudo, publicado pela Canadian Men’s Health Foundation (CMHF), perguntou a 1.019 pais canadenses sobre o impacto da pandemia em seus papéis paternos. Entre os destaques podemos citar:
40% sentiram que o bloqueio teve um impacto positivo em seus papéis como pais;
52% estavam mais conscientes de sua importância como pai;
60% sentem-se mais próximos dos filhos;
49% decidiram se envolver mais como pai no futuro;
61% têm fornecido companhia para seus filhos com mais frequência, com quase metade planejando continuar a fazê-lo quando as restrições forem suspensas;
56% têm orientado seus filhos com mais frequência, com quase metade planejando continuar fazendo isso após o isolamento.
Fonte: Canadian Men’s Health Foundation (CMHF)
Tanto para pais quanto para mães, estabelecer pontes com os filhos também é a saída para uma relação equilibrada. Uma forma de colocar isso em prática é realizando um silêncio proativo, que cala por fora e dialoga por dentro, evitando que palavras sejam ditas de forma impensada, com tom de voz elevado, e que críticas sejam feitas de forma exagerada.
A psicóloga Camila Cury ressalta ainda que o diálogo também é fundamental, inclusive para que os pais possam mostrar aos filhos as dificuldades que estão enfrentando no momento.
Válvula de escape
Uma tática sugerida pela psicóloga para azeitar a relação do dia a dia é criar “sinais” que demonstrem um desconforto sentido entre uma das partes
Comportamento proativo
Fugir de uma posição passiva é fundamental para criar uma rotina mais proativa e estratégica por parte dos pais. Algumas reflexões que podem ajudar neste momento são:
:: Como nós podemos nos conectar com nossos filhos e deixá-los mais calmos? :: Minhas críticas são razoáveis ou estou me apegando a pequenezas? :: Quais batalhas valem a pena nessa relação, já que não conseguirei vencer todas?
A Sociedade Brasileira de Pediatria divulgou uma nota de alerta intitulada “Pais e filhos em confinamento durante a pandemia de Covid-19”, em que reúne práticas que podem contribuir na preservação do bem-estar de crianças e adolescentes que estão expostas ao “estresse tóxico” do momento. Vários dos pontos abordados focam em questões que afetam diretamente a qualidade do relacionamento doméstico. Acesse o material completo aqui.
O comportamento humano está sendo frontalmente impactado pelas circunstâncias do isolamento social. Os reflexos podem ser diversos em cada família, por isso é importante sabermos que somos capazes de identificar nossos sentimentos e trabalhar sobre eles de modo a construir pontes nos relacionamentos domésticos.
Fonte: Globo
Por: Oscar Neto, Ana Gabriela Nascimento e Carolina Carvalho
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